A FÉ DE DAUDA
De: Inês Cândido - Jornalista
Da cozinha da Casa da Comida, em Lisboa, saem dezenas de empadas por dia. A rotina repete-se, minuciosamente, entre estender a massa, cortá-la em pequenos pedaços, enformá-la nos pequenos buracos e preenchê-la com o recheio - toda a gente sabe que o segredo está no recheio. Depois, o segredo é tapado com uma pequena camada de massa, que quando sai do forno nos faz esquecer qualquer dieta.
A rotina já está na ponta dos dedos de Dauda Cruman. Aos 42 anos, a vida sempre foi feita de rotinas. A primeira, incutida pelo pai, a ele e aos (muitos) irmãos, desde pequeno.
Dauda sabia que os dias eram quase todos iguais, quando ainda pequeno vivia em Bissau, capital da Guiné: saindo da escola, o tempo era de estudar. Estudar muito, até ser hora de dormir. Só podia parar para rezar, 5 vezes por dia, naqueles minutos em que nada é mais importante do que a Fé. Depois dormia, para voltar a repetir a rotina, ao nascer do sol.
A rotina era quebrada pelos melhores dias da semana: Primeiro sábado, depois domingo. Dias em que podia jogar futebol até se cansar. Se é que uma criança alguma vez se cansa.
O pai era sociável, a mãe humilde. Palavras de um filho que estudou até ao 11º ano, e que perdeu a mãe quando ainda não se sentia adulto. Ninguém está preparado para perder a mãe, e 20 anos depois, Dauda ainda recorre a ela, sempre que se sente aflito.
Quando se lembra dela, reza. A religião, Muçulmana, dá-lhe o amparo da mãe e a lembrança do pai. Quando começou a estagiar na Casa da Comida era mês de Ramadão. Dias difíceis para quem não pode comer nem beber água, do nascer ao pôr do sol.
Mas Dauda é persistente. Aprendeu o segredo das empadas, como se as fosse devorar de seguida, e os caminhos de uma profissão que nunca tinha experimentado.
Na Guiné, nada era semelhante com a actual realidade portuguesa. Esteve desde muito novo ligado à Comissão Nacional de Eleições, e percorria o país para explicar às populações rurais a importância de votar. Ia às aldeias mais escondidas, para explicar que não era obrigatório votar num determinado candidato. Ou que o simples facto de dobrar mal a folha de voto podia tornar aquela escolha nula. Em aldeias sem água potável, pediam-lhe que dissesse em quem deviam votar. Dauda respondia que o importante era contribuir para o futuro do país.Conta o que fazia com detalhe e com emoção. No dia das eleições, sentava-se nas mesas, controlava os votos, ajudava quem não sabia o que fazer.
Quando o Presidente estava eleito, dividia-se entre o futebol (ganhava bem nas eleições, podia dar-se a esse luxo) e campanhas de formação sobre epidemias. Sempre que chovia muito, era de novo chamado para percorrer o país, desta vez para explicar à população os perigos da cólera, ou do paludismo.
Nunca teve um emprego fixo, das 9 às 5, e nunca sentiu a falta dele. Foi trabalhando quando precisava de dinheiro, e vivendo como queria nos intervalos. A forma como se relaciona com os outros - parecemos amigos de longa data logo no primeiro encontro - terá facilitado o seu caminho.
Pelo meio, perdeu a família, viu começar o conflito armado, sentiu medo, e percebeu que precisava de se mudar.
Portugal chegou-lhe como remédio para a doença. Um problema inexplicável no olho dá-lhe um visto de 3 meses para se vir tratar ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Nunca mais voltou. Não se importou quando o tratamento, mais prolongado, o manteve por cá, porque ficou maravilhado na chegada a Portugal. Primeiro, maravilhado, depois, assustado. Esteve 3 dias sem sair de casa. Não sabia onde ir. Primeiro habituou-se ao quarteirão, depois ao bairro, num dia aventurou-se até à estação. Depois, apanhou o comboio para Lisboa, onde agora já passeia sem preocupações.
Procurou as associações ligadas à Guiné, pediu ajuda para se integrar, e acabou a dar formação - mais uma vez -, agora para prevenir a mutilação feminina de jovens africanas.
Trabalhou em obras, agravou o problema no olho. Não tem documentos, o que nem lhe permitia pedir ajuda no centro de saúde.
O processo está pendente no SEF, mas não faltará muito para que consiga um cartão do cidadão. Até porque Dauda já sabe fazer empadas típicas, já se aventurou para lá do bairro, já descobriu o que é um "pica". Já se sente português.